Júlio Furtado
Segundo Nathaniel Branden, autoestima é o nível de apropriação que temos perante a vida e os desafios que ela nos coloca, em outras palavras, é o quanto acreditamos que vamos dar conta da vida e termos sucesso. Ter uma autoestima saudável não significa repetir a todo o momento que é bom ou o melhor de todos. Esse comportamento revela uma tentativa de acreditar no que diz, que por sua vez é sintoma de quem se apoia na ilusão de um auto respeito e de uma auto eficiência sem base na realidade. Isso caracteriza um certo tipo de defesa para que não tenhamos que encarar de frente nossas fragilidades.
Uma das características de uma autoestima saudável é uma avaliação segundo parâmetros reais, sem ampliações ou negações do que somos. Ter uma autoestima saudável não significa estar imune à dor e ao sofrimento, mas encará-los de frente quando surgirem diante de nós. Quem tem autoestima saudável sofre, mas não se identifica com o sofrimento. Adoece, mas procura rapidamente a cura. Logo, estamos falando de um estado de lucidez e bom senso com relação a si mesmo. Quem tem uma autoestima saudável, encara os desafios pois acredita que pode vencer e caso não vença, acredita que pode aprender com a experiência e tentar de forma mais fortalecida de uma próxima vez. Já aquele que tem uma baixa autoestima tende a evitar os desafios, evitando, assim, a dor da possibilidade da perda.
Nos últimos quarenta anos, a autoestima do professor vem sofrendo impactos desafiadores para a manutenção de sua saúde. A Lei 5692 oficializou, no início da década de setenta, o professor sem formação através da imposição da profissionalização em nível técnico do então Segundo Grau. Impusemos a obrigatoriedade de uma formação sem nenhuma estrutura física, tecnológica ou humana. Não foram poucos os técnicos formados sem terem tido, sequer, uma aula a respeito da profissão que constava em seus certificados. O problema foi resolvido com a contratação de engenheiros, contadores, químicos e até mesmo de técnicos nas áreas de formação.
Outro fenômeno que se constituiu em forte impacto na autoestima do professor foi o processo de democratização da escola pública, também iniciado na década de setenta. A construção em larga escala de escolas demandou a formação rápida de novos professores, refletida nos Cursos Adicionais (cursos de um ano de duração que eram feitos após o curso Normal e que tinham como objetivo autorizar professores para lecionar até a sexta série) e nas Licenciaturas Curtas (que autorizavam lecionar até a oitava série do então Primeiro Grau, atual Ensino Fundamental). Essa necessidade de docentes parece perdurar até hoje uma vez analisados os índices de falta de professores pelo Brasil a fora. Igualmente, a formação rápida parece ter virado critério, dados os cursos de três anos à distância que se proliferam pelo país. Um terceiro impacto certeiro na autoestima do professor foi o fato de que a profissão docente é a única que contradiz a lei da oferta e da procura. Mesmo com a procura maior do que a oferta, os salários permanecem baixos. Essa autoestima tão abalada deu origem a uma séria crise de identidade profissional.
É através de nossa identidade que nos percebemos, nos vemos e queremos que nos vejam. A identidade profissional é uma construção do profissional que somos e que evolui ao longo da nossa carreira. Essa identidade profissional pode ser influenciada pela escola, pelas reformas e pelos contextos políticos. A literatura disponível nos diz que a identidade profissional dos professores inclui o compromisso pessoal, a disposição para aprender a ensinar, as crenças, os valores, o conhecimento sobre a matéria que ensinam, as experiências passadas e a vulnerabilidade profissional. É um conceito que evolui e se desenvolve, tanto pessoal como coletivamente. A identidade é constructo que se desenvolve durante a vida. Esse desenvolvimento acontece no terreno do intersubjetivo e se caracteriza como um processo evolutivo, um processo de interpretação de si mesmo como pessoa dentro de um determinado contexto. É o que vemos no reflexo do espelho da consciência de nós mesmos. Numa primeira instância, a identidade pode ser entendida como uma resposta à pergunta “quem sou eu neste momento?” A identidade profissional não é uma identidade estável, inerente, ou fixa. É resultado de um complexo e dinâmico equilíbrio onde a própria imagem como profissional tem que se harmonizar com uma variedade de papéis que os professores sentem que devem desempenhar.
Mais do que isso, a identidade profissional é um processo evolutivo de interpretação e reinterpretação de experiências, uma noção que coincide com a ideia de que o desenvolvimento dos professores nunca para e é visto como uma aprendizagem ao longo da vida. Desse ponto de vista, a formação da identidade profissional não é a resposta à pergunta “quem sou eu neste momento?”, mas sim a resposta à pergunta “o que quero vir a ser?” A identidade profissional contribui para a percepção da auto eficácia, da motivação, do compromisso e da satisfação no trabalho dos docentes, e é um fator importante para que nos tornemos bons professores.
As mudanças das últimas décadas geraram ambiguidades e contradições na situação profissional dos professores. A crise de identidade profissional docente tem como pano de fundo a decadência dos princípios ilustrados modernos que davam sentido ao sistema escolar. A morte da escola como “redentora de todas as mazelas sociais” fez morrer junto a figura do professor enquanto aquele que professa a verdade e fez nascer a necessidade de reconstrução da própria identidade. Tudo isso somado aos processos de desvalorização socioeconômica e redução e “flexibilização” da formação docente resultou num verdadeiro desmantelamento da nossa identidade profissional.
Alguns estudiosos do assunto estão chamando atenção sobre a ironia e a contradição dos discursos que vem sendo veiculados a respeito da necessidade de reconstrução da identidade docente. Por um lado está sendo vendida aos professores e às escolas a ideia de que deveriam ser mais autônomos e responsáveis pelas próprias necessidades no seu fazer, ao mesmo tempo se está transmitindo a eles como devem ser seus resultados e como devem abordar as prioridades nacionais para melhorar a competência internacional do país. Supõe-se que os professores estão desenvolvendo a autonomia escolar exatamente no mesmo momento em que os parâmetros com que se espera que trabalhem, e mediante os quais serão avaliados, estão sendo cada vez mais padronizados.
A reconstrução da identidade docente precisa estar respaldada, antes de qualquer coisa, na crença da possibilidade. Essa crença, na prática, se traduz pela promoção da instrumentalização técnica e pela viabilização da troca de experiências. Outro princípio norteador é o da desconstrução do seu fazer. O professor precisa ser levado a desconstruir sua prática, a partir de vivências de novos caminhos. É claro que tudo isso precisa vir permeado pelo princípio da justiça social, que possibilite ao professor se dedicar à profissão sem se tornar vítima do “terrorismo” da carga-horária.
Façamos também uma reflexão sobre algumas sequelas advindas de toda essa crise de autoestima, visando apontar alguns caminhos de libertação. A primeira sequela está relacionada à busca de um modelo de bom professor utilizando-se apenas referenciais externos. A principal energia que nos torna bons professores é a nossa própria forma de ser. O professor competente nasce de mim mesmo, com todas as minhas forças e fraquezas. Se, por exemplo, me apresentam como referencial de bom professor alguém de humor exacerbado e se não possuo essa característica natural, depositarei na aprendizagem de técnicas de narração de piadas toda a esperança de desenvolvimento profissional. Somos tão melhores professores quanto utilizamos para isso o que já temos de bom e de destaque em nossa personalidade. A boa comunicação oral, a seriedade, a organização, a atenção, a criatividade e a observação aos detalhes são componentes de uma efetiva ação docente tanto quanto o senso de humor. Eu diria até que o senso de humor vem num segundo nível. O que estou querendo dizer é que o meu eu natural é minha maior fonte para uma ação docente competente. Para isso, precisamos “olhar pra dentro” e reconhecer verdadeiramente quem somos com todas as nossas forças e fraquezas. Precisamos nos olhar como um todo sem medo do que vamos ver, pois é através da integração dos opostos que construímos o equilíbrio.
Outra questão que reforça a ideia de que somos nossa própria alavanca na construção de uma identidade de sucesso no exercício da ação docente é o fato de que a primeira relação necessária à aprendizagem significativa é a interação cultural entre professores e alunos. Significa dizer que alunos e professores precisam interagir a partir de uma mesma cultura. Estamos falando de um perceber o outro como ser humano, antes de se perceberem como professor ou como aluno. Falar sobre o nosso time de futebol, sobre a fila que enfrentamos no supermercado ou do trabalho que nosso filho deu no parque de diversões no final de semana nos torna parte de uma mesma cultura na relação com os alunos e nos coloca num mesmo patamar “convivencial”, facilitando, por parte do aluno, a coragem para ousar na medida em que diminui o medo de errar.
É fundamental que unamos inteligência e vontade para que possamos efetivar a complexa, mas necessária tarefa de desaprender e reaprender hábitos e crenças que nos levem a uma prática docente conectada com a realidade atual. Os hábitos se configuram como aprendizagens automatizadas e enraizadas em nosso cotidiano. Essas raízes, porém, alimentam-se de nossa autoestima em frangalhos. Vale dizer que a mudança verdadeira de hábitos fundamenta-se na mudança de crenças, e, mudar crenças é tarefa que passa por perseverança e autodeterminação.