Júlio Furtado
A escola nasceu no período de transição das sociedades de Antigo Regime para as modernas sociedades industriais, fundadas no capitalismo liberal e num sistema de EstadosNação. A escola não é apenas uma “invenção histórica”, mas uma invenção recente que representa uma revolução na forma de “fabricar o ser social”. Durante um longo período que, cronologicamente, podemos situar entre a Revolução Francesa e o fim da Primeira Grande Guerra, a escola viveu o que, hoje, podemos retrospectivamente considerar uma “idade de ouro”, que coincide com o apogeu do capitalismo liberal. É essa “idade de ouro” que Rui Canário, grande educador e pesquisador português, chama de “era da escola das verdades”, na medida em que correspondeu, por um lado, a um período de harmonia entre a escola e o seu contexto externo e, por outro lado, a um período de harmonia e coerência internas entre as suas diferentes dimensões. Essa foi a “escola da verdade”. Após a Segunda Guerra Mundial até meados da década de setenta, vivemos um período marcado pelo crescimento rápido do número de escolas. Esse crescimento foi consequência do efeito combinado do aumento da oferta (políticas públicas) e do aumento da procura (corrida para a escola). A “explosão escolar” assinala um processo de democratização de acesso à escola que marca a passagem de uma escola elitista para uma escola de massas e a sua entrada num “tempo de promessas”. Junto com a expansão quantitativa dos sistemas escolares estava associada uma euforia e um otimismo em relação à escola, com base na associação entre aumento do número de escolas e três promessas: uma promessa de desenvolvimento, uma promessa de mobilidade social e uma promessa de igualdade. A economia mundial, no período entre o final da Segunda Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo (início dos anos setenta), cresceu de forma exponencial, transformando esse período numa era de prosperidade sem precedentes na história da humanidade. O “curso normal das coisas” é que a produção e os rendimentos aumentem de ano para ano e que cada geração seja mais rica do que a geração anterior. Essa foi a lógica fabricada para sustentar a escola das promessas. A “explosão escolar” que marcou este período, em especial nos anos sessenta, representou o alto nível de importância atribuído à educação como elemento de impulso econômico. Estabeleceu-se, então, uma associação direta entre o progresso econômico e a elevação geral dos níveis de qualificação escolar das populações. As despesas com a educação passam a ser encaradas como investimento no capital humano e esse investimento como uma condição do desenvolvimento, necessariamente impulsionado pelo Estado. No início dos anos setenta, a primeira crise do petróleo inaugura o fim desse ciclo marcado pelas “ilusões do progresso” e pela tentativa de construção das “sociedades da abundância”. Paralelamente, começamos a assistir a uma “crise mundial da educação”. Esse fato anuncia a falência das promessas da escola. Começou a ficar evidente, já no final da década de sessenta, que não estava ocorrendo um aumento de oportunidades proporcional ao número de pessoas que a escola estava “produzindo”. Outra evidência que começou a ficar aparente foi a falácia de que existe uma relação direta entre democratização do ensino e aumento de mobilidade social ascendente. Como afirma Rui Canário, a sociologia da “reprodução” pôs em evidência, nessa época, o efeito reprodutor e amplificador das desigualdades sociais, desempenhado pelo sistema escolar. Na medida em que se democratiza, a escola compromete-se com a produção de desigualdades sociais e deixa de poder ser vista como uma instituição justa num mundo injusto. Como disse o grande sociólogo François Dubet a respeito dessa época, “a escola perdeu a sua inocência”.
ESCOLA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: DAS INCERTEZAS ÀS POSSIBILIDADES – Parte 1